top of page

O som perfeito dos dias comuns

Saber ouvir o cotidiano pode ser um desafio para tornar nossos dias perfeitos.

 



Anos atrás, recebi na terapia uma solução simples para minhas primeiras crises de ansiedade: "você precisa preencher as lacunas que dominam seus dias". Na época, depois de um bom tempo de preparação para o vestibular, me vi numa linha de chegada bem diferente da que eu havia idealizado (a verdade é que talvez nunca tivesse planejado nada muito concreto). A minha vida foi, por um bom tempo, essa preparação pra algo indefinido. O pós era o vazio. E o mais engraçado é que, pra mim, era a rotina de estudos atribulada que bloqueava a minha felicidade. Eu achava que quando me libertasse daquilo, os dias finalmente seriam perfeitos, mas não foram. Então eu precisei torná-los, com uma nova rotina.


'Perfect Days', o mais novo trabalho do cineasta alemão Wim Wenders, é um filme sobre rotina. No longa, que representou o Japão no Oscar 2024 na categoria de melhor filme estrangeiro, acompanhamos o dia a dia de Hirayama (Kōji Yakusho), um homem solitário que trabalha limpando banheiros públicos em Tokyo. No decorrer da trama, conhecemos o ritual diário desse protagonista que parece conseguir tirar o melhor de pequenas coisas, explorando a paixão pela fotografia, pela literatura e também pela música, tudo isso em meio aos dias repetitivos de trabalho.



Num filme com diálogos escassos que reforçam justamente uma abordagem solitária, a música é, de fato, fundamental. E (é claro) foi assim, preenchendo o vazio de seus dias com canções, que Hirayama me ganhou. Conectada às vivências desse personagem, a música transmite com fluidez a mensagem do filme, conversando o tempo todo com o espectador para estabelecer um contato mais íntimo com os sentimentos de Hirayama.


A estrutura de 'Perfect Days' é dividida em dias muito parecidos. Entre esses dias, há uma curta sequência em P&B que destaca luzes e sombras. Aqui, vale ressaltar o princípio que parece ser a filosofia do longa: "komorebi", palavra de origem japonesa que referencia os padrões de sombras criados pela luz do sol ao atravessar o farfalhar das árvores. Com uma Olympus, Hirayama fotografa o komorebi todos os dias em seu horário de almoço, sempre registrando a beleza dessa interação entre luz e sombra que, dia após dia, forma imagens únicas. Se todos os dias são perfeitos (e únicos), por que deixar que eles desapareçam completamente? Hirayama deseja viver o presente com intensidade, mas registrar recordações, guardar fragmentos.


A música intradiegética é um grande destaque no filme: Hirayama desenha a trilha sonora de sua própria vida com fitas cassetes. No início da trama, já temos um prenúncio do komorebi, quando, antes do sol, o personagem desperta e sai para trabalhar. Na cena que segue, enquanto dirige, Hirayama olha o céu que já começa a clarear e escutamos House of the Rising Sun, do The Animals.


Outro bom exemplo da conexão inteligente entre música e trama no filme é o "às vezes me sinto tão feliz, às vezes me sinto tão triste" de Pale Blue Eyes (The Velvet Underground), que marca um dos trajetos de carro de Hirayama. A letra da canção se conecta com a inconstância que move o filme: dias perfeitos podem ser constituidos de momentos bons e ruins, afinal, não precisamos (e não conseguimos) estar felizes o tempo todo. A verdade é que alguns momentos difíceis são fundamentais para que acessemos a nossa força interior e capacidade de superação. Assim como um Rembrandt não existe sem as sombras que realçam as luzes, nossos dias não seriam tão preciosos sem momentos de incerteza, dificuldade.


(Sittin’ On) The Dock of the Bay (Otis Redding) também marca o caminho de Hirayama rumo ao trabalho. Redding reflete, na música, enquanto está sentado observando o oceano na Califórnia: "Sentado ao sol da manhã / Eu vou ficar sentado até que a tarde acabe / (...) Deixando o tempo passar". Na cena, o mais interessante é como o tom contemplativo da canção nos transporta para o espaço introspectivo de Hirayama. A verdade é que, assim como o eu lírico da música, o protagonista de Perfect Days se encontra, boa parte do filme, em momentos de contemplação solitária.


Na curadoria de Hirayama temos também Perfect Day (Lou Reed), Brown Eyed Girl (Van Morrison), Redondo Beach (Patti Smith), Feeling Good (Nina Simone) entre outras. Todas essas músicas parecem se conectar à narrativa de forma muito natural, como um fio que conduz a história.


Levando em consideração que Hirayama vive uma vida comum, tem um emprego comum e é ignorado por grande parte das pessoas que o circundam, Perfect Days parece destacar a invisibilidade do protagonista. Curiosamente (ou nem tanto), o filme me fez pensar mais sobre inaudibilidade. Quem me conhece sabe o quanto eu gosto de trilhas sonoras engenhosas. E quando falo em trilha sonora, não me refiro só às músicas. Analisando os sons e a representação da solitude de um personagem que não fala muito, vale entender não só a genuinidade do silêncio, mas também como a ausência do diálogo permite valorizar outros ruídos tidos como garantidos: os pássaros que cantam todos os dias pela manhã; o atrito entre a vassoura e o chão quando alguém varre a rua; o caminhão de lixo passando; os alarmes de carro; a obra no vizinho; a música no carro que dialoga com nossas emoções. Se o som ao redor sempre conversa com a gente, estamos realmente sozinhos? Quando tudo isso se tornou imperceptível? Talvez nossos dias tenham menos lacunas se nos esforçarmos para perceber, ouvir mais.





Comments


bottom of page