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Mais perto das feras

Na segunda temporada de The Bear (FX), em meio ao caos habitual, sutilezas nos aproximam dos personagens.

 

Talheres em falta, refrigerador com defeito, pessoas instáveis, comida impecável. A atmosfera caótica da cozinha em The Bear dialoga com as contradições experimentadas pelos complexos personagens da trama de Christopher Storer. Na segunda temporada, somos convidados a avançar mais a fundo nas camadas desses personagens, que ainda parecem perdidos, quase sempre inquietos por algum motivo. O que impressiona é como a série permite entender esses desarranjos com cuidado, pelas sutilezas.


Carmy (Jeremy Allen White) recebe, no fim da primeira temporada, uma carta escrita antes de morrer pelo irmão, Michael (Jon Bernthal). Na carta, Michael deixa a receita de um dos pratos mais populares do 'The Original Beef', um espaguete que havia sido retirado do cardápio pelo próprio Carmy quando assumiu o restaurante. Emocionado, Carmy decide trazer de volta o espaguete para o 'Beef' e acaba encontrando uma boa quantia em dinheiro (escondida por Michael) dentro de latas de extrato de tomate. Os desdobramentos desse incidente acompanhamos na segunda temporada, com o fechamento do 'The Original Beef' para uma (caótica) reforma e o início de um novo empreendimento: o restaurante 'The Bear'.


Na primeira temporada, a relação de Carmy com a cozinha já se mostra um escape, ainda que ele seja um excelente chef e goste do que faz. Com a morte de Michael, Carmy parece não aceitar a possibilidade de ser feliz novamente. Ele mergulha no trabalho não só buscando uma forma de honrar o legado do irmão, mas tentando não olhar para a própria vida fora dali. Quem já lidou com a dor da perda de alguém próximo consegue entender esse universo interior difícil e cheio de nuances que o protagonista de The Bear habita. Para piorar, a infelicidade e a ansiedade desse personagem parecem ser potencializadas por algum trauma que envolve a pressão sofrida no antigo trabalho. Se na primeira temporada já atravessamos esse emaranhado de sentimentos para conhecer Carmy, agora, na segunda, a sensação é de que uma nova barreira está sendo desfeita.


No segundo episódio, traços autodestrutivos da personalidade complexa de Carmy são relembrados ao espectador de forma quase imperceptível, durante a reforma no restaurante. Enquanto Richie (Ebon Moss-Bachrach), Marcus (L-Boy) e Fak (Matty Matheson) fazem um alvoroço para mover armários de lugar, Carmy tenta usar o telefone para resolver o problema de um refrigerador quebrado. O cozinheiro informa, então, seu número de contato para um suposto atendente – o que parece uma ação de catálise, algo sem importância ou pouco relevante para a condução da trama.


No caos da reforma, Carmy protege um dos ouvidos enquanto usa o telefone.

Só no fim do episódio entendemos que, na verdade, a cena é quase um prenúncio, uma informação para que o espectador consiga entender o que vem depois: Carmy reencontra Claire – uma paixão antiga – e ela pede ao cozinheiro seu número de contato. Na cena, com um olhar perdido, Carmy começa a ditar o mesmo número que já vimos na cena do refrigerador, mas acaba desistindo e trocando o último “1” por “2”.


Ao decidir trocar o número, Carmy nos entrega, pelo olhar, que talvez ele esteja perdido em suas próprias paranoias.

O detalhe dos números trocados é mínimo e, é claro, pode passar despercebido. Se passar, isso não prejudica a compreensão geral da narrativa: a própria Claire coloca em palavras, posteriormente, o fato de que Carmy deu a ela um número errado (mesmo que alguns espectadores já tenham captado essa informação). Conseguir fazer essa captura, entretanto, é uma oportunidade de se aproximar de Carmy, já que, no momento em que o número errado é dito, o que antes poderia ser visto como catálise adquire significados mais profundos. Se compreendemos que o cozinheiro quase disse o número certo e acabou desistindo, podemos inferir algum motivo para essa desistência: talvez, no fundo, ele esteja interessado em Claire. Talvez exista naquela relação um fio de esperança para Carmy, ainda que ele continue resistindo a qualquer sinal de felicidade.


Recorrente na TV e no cinema, o foreshadowing é uma espécie de prenúncio, um recurso que compreende à inserção de pistas ou indícios no decorrer de uma narrativa, antecipando eventos futuros no sentido de enriquecer a experiência do espectador. Essa experiência pode ser ainda mais interessante quando as pistas são costuradas de modo que é difícil entender o sentido delas antes que um evento posterior se concretize. Assim, elementos que a princípio podem parecer isolados e alheios à construção diegética acabam se entrelaçando de forma coesa, reforçando a credibilidade da trama.


Identificando como a utilização desses prenúncios é trabalhada de forma tão discreta em The Bear, uma (inusitada) comparação pode fazer sentido para os que estão acompanhando a reprise de Mulheres Apaixonadas, nas tardes da Globo. Em um determinado momento da trama, Manoel Carlos – um autor curiosamente reconhecido por suas novelas cheias de catálises –, traz uma pista sobre a futura morte da personagem Fernanda (Vanessa Gerbelli), que é assassinada em um tiroteio. Acontece que, neste caso, a pista é bem direta: Salete (Bruna Marquezine), a filha de Fernanda, começa a sonhar diariamente com um anjo que diz que sua mãe vai morrer em breve. Essa informação, nada discreta, ainda é reincidente na novela.


A comparação entre The Bear e Mulheres Apaixonadas pode causar estranheza, afinal são dois gêneros distintos (sendo a novela de vinte anos atrás), mas a intenção aqui é só pontuar dois extremos. Na verdade, com capítulos diários e uma audiência inconsistente, talvez não faça o menor sentido utilizar pistas tão sutis como as de The Bear no roteiro de uma novela. A lógica da comparação não é desdenhar ou enaltecer nenhuma das duas obras, mas mostrar como os mesmos recursos narrativos podem ser engendrados de diferentes formas em gêneros televisivos variados, de acordo com o objetivo e o formato.


Voltando à segunda temporada de The Bear, associações entre os personagens aparecem quando menos esperamos, sempre de forma sutil. No flashback natalino em que se passa o quinto episódio, Carmy reencontra Michael e os dois trocam algumas palavras em um momento sozinhos. Na conversa, quando Michael pede para Carmy dizer três coisas sobre a viagem para Copenhague, ele responde: "É o lugar mais bonito que já vi", "Eu dormi em um barco" e "Eu alimentei um gato invisível", conectando diretamente a sua experiência com a de Marcus, que também passa por Copenhague (no quarto episódio).


Em momentos distintos, Carmy e Marcus parecem ter uma experiência semelhante em Copenhague.


E por falar na viagem de Marcus para Copenhague, lá ele se aproxima de Luca (Will Poulter), um chef mais experiente. Em um diálogo marcante, Luca diz a Marcus que só encontrou a paz quando finalmente entendeu que nunca seria o melhor, mas poderia se esforçar para ser ótimo. Ele admite que isso aconteceu quando precisou lidar com um chef mais talentoso, porque o fracasso ao tentar acompanhá-lo serviu como força motriz para continuar melhorando e se tornar tão grande quanto é hoje. Neste caso, a cena já não aparenta ser uma catálise porque o diálogo é importante para o desenvolvimento de Marcus, mas, para além disso, a conversa também possui a função de entregar algumas pistas a serem revisitadas. No episódio seguinte, na cena em que Richie caminha por um corredor com fotos de antigos membros da equipe da chef Terry (Olivia Colman), ele se depara justamente com uma foto de Carmy ao lado de Luca. A foto não possui um significado relevante para Richie, mas pode ser interpretada pelo espectador como um indício de que o chef mais talentoso que Luca conheceu é Carmy, o que faz total sentido quando comparamos a paz que Luca encontrou com a ansiedade na qual Carmy está estagnado, talvez por sempre ter sido o melhor.


Na cena, a informação que não possui significado para Richie, pode ser uma pista para o espectador: Carmy e Luca trabalharam juntos.

The Bear testa nossa memória e atenção mesmo nas cenas mais triviais. No episódio que encerra a segunda temporada – quando a metamorfose de Richie parece concluída –, ele leva para o tio Cicero (Oliver Platt) uma sobremesa de banana com chocolate feita especialmente para ele, já no novo restaurante. Para entender o significado dessa cena, o espectador precisa lembrar que, no quinto episódio, Cicero ajudou Richie a contornar uma situação embaraçosa com sua ex-esposa Tiff (Gillian Jacobs) e, pouco antes disso, o tio mencionou uma memória afetiva marcante: a infância com o pai levando-o para comer banana com chocolate. Ao resgatar esse momento, entendemos que a atitude de Richie mostra como ele evoluiu não só no sentido profissional, mas também como indivíduo, conseguindo demonstrar sua gratidão em um gesto tão pessoal e gentil.


Ao estabelecer vínculos com a narrativa e com os personagens (também de forma leve), a trilha sonora é mais um elemento de destaque em The Bear. O terceiro episódio, focado em Sydney, é um bom exemplo disso. Quando Carmy e Syd cozinham juntos e o resultado é um prato pavoroso, Carmy sugere a busca por inspirações culinárias nas ruas de Chicago. Frustrada, Syd deixa a cozinha ao som de 'Goodbye Girl' (Squeeze) e começa sua jornada acompanhada da música 'Twenty Five Miles' (Edwin Starr). Temos, a partir daí, muitos pratos e músicas, com destaque para a sequência em que, ao som de 'Future Perfect' (Durutti Column), Syd transita pela cidade comendo, anotando, observando construções e arquitetando um prato mentalmente.


Ao som de 'Future Perfect' (Durutti Column), Syd idealiza o prato perfeito enquanto se desloca pela cidade. É bonito de ver e ouvir.



Uma coisa é certa: quanto mais sutis, mais envolvedoras são as pistas que moldam certas narrativas. Entrelaçadas na trilha sonora, nos diálogos ou mesmo na cinematografia, essas pistas adicionam uma dimensão intrigante à experiência de quem assiste. Queremos mergulhar na trama, especular sobre o que está por vir, celebrar cada descoberta.


No caso de The Bear, são muitos os detalhes que fazem da série o que ela é. Tantos, que é quase impossível passar por todos assistindo só uma vez. Mas a verdade é que, quando sabemos que as informações podem chegar sem bater na porta, nos habituamos a estar mais atentos, envolvidos. A série é mais interessante de se ver (e rever) se percebemos esses detalhes, entendendo que eles podem ter um significado importante. Quando se trata de The Bear, tirar os olhos da tela não é uma boa opção.

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